sábado, 26 de dezembro de 2020

Uma última carta para a Jessica (que eu sei que ela nunca vai ler)

Olá Jessica, mais uma vez (a última, na verdade). Antes de tudo, feliz natal e espero que no próximo ano tu consigas o reconhecimento que teu talento merece. Sei que eu deveria ter dito isto antes, mas admiro a forma na qual escreves e penso que és uma das melhores pessoas a escrever que já entrei em contacto.

Isso tem sido mais uma despedida do que tudo, até porque eu sei que tu não queres mais nenhuma forma de contacto comigo, isso se ainda se lembrar de minha existência. O que é uma pena, pois era logo agora que eu mais precisava da tua ajuda.

Deixe-me começar desde quando cortamos cortastes o contacto comigo. Aquilo me deixou bem mal por alguns dias até o jantar de curso, mas acho que acabou sendo melhor sem ti. Ali eu pude ver que há pessoas que acabariam sendo meio que minha família aqui em Leiria. Que apesar de tudo, eu não estava sozinho aqui, e vários deles acabaram me dando as orientações e guias que eu confesso que esperava que tu me farias. Apesar de me sentir muito atrás em relação ao resto da turma, o primeiro semestre não correu com muitos problemas, mesmo eu estando literalmente a morar no local com a pior internet da Europa, que quando funcionava, era horrível. Isso quando funcionava.

No entanto, com o começo do segundo semestre, percebi que aquele grupo de amigos na verdade era bastante menor do que o que eu pensava ser. O projecto do semestre me correu extremamente mal desde o começo, onde eu tive que ouvir alguém que era como um de meus irmãos para mim zombar de mim na minha frente porque eu tinha comentado que ainda não tinha conseguido um grupo para o projecto. E a partir daquele dia eu comecei a me sentir morto por dentro, como se aquela pessoa tivesse matado a minha esperança. E eu não pude contar com ninguém para falar sobre isso. A pessoa simplesmente se recusou a reconhecer o que fez. "Isso nunca aconteceu", "tens trinta anos, não oito", tal indivíduo disse quando eu lhe contei o que ele fez. Gente que eu pensava ser um irmão em Leiria me acusava de estar a mentir, difamar o nome do colega, denegrir a imagem do colega e recomendando a esquecer tudo isso. Mas quem bate se esquece que bateu, no entanto, quem apanha nunca esquece que levou. E aos poucos fui entrando em depressão.

Então começou a pandemia e o isolamento, onde eu passava dias, até semanas sem falar pessoalmente com ninguém, boa parte do tempo por medo de ser contagiado com o vírus (o que de fato aconteceu a um dos meus colegas), e meu estado mental piorou drasticamente. Eram vários os dias em que eu não conseguia fazer nada a não ser tentar matar o tempo para chegar logo no fim do semestre e poder me esquecer do projecto, que, aliás, nunca chegou a ser entregue. De uns trinta grupos, acho que o meu, que foi colocado de última hora e extremamente desorganizado desde o primeiro momento, deve ter sido o único que não entregou. Cheguei a fazer minha parte, mas não apresentei, por sentir vergonha. Minha parte acabou até sendo bem mais que o que era para ter sido, mas só porque eu praticamente forcei o líder do grupo a me dar mais responsabilidades do que o que era planeado, que era algo extremamente irrisório e que não dava nenhuma diferença no resultado final. Comecei a me afastar e me sentir alienado da minha turma a ponto de considerar seriamente me transferir para outro lugar em Portugal. Onde eu não tivesse mais contacto com nada que me lembrasse aquela pessoa que me jogou na depressão. Hoje tudo o que lembra tal pessoa me faz sentir apenas nojo e ódio. De tal pessoa e de tudo o que lembre dela. Até dividir a sala de aula com tal indivíduo tem me sido bastante difícil, pois eu me sinto extremamente mal. Procurar grupos tem sido muito difícil por causa do receio de ser recebido com "bruh" ou pior, aquela pessoa me zombando de novo com "olha o bacano, o grupo dele é ele, ele e ele mesmo". E por isso houveram trabalhos que eu nem sequer consegui entregar. Me sentia paralisado de medo que tais coisas acontecessem, de que eu fosse forçado a fazer tudo sozinho e ser zombado por não conseguir. Hoje olho pro armário e quando vejo o traje académico que comprei nos últimos dias antes da pandemia, quando eu não me sentia tão mal, há vezes que eu acabo o usando mais como um desafio a tal pessoa, como se eu estivesse a dizer "olhe, para a tua tristeza, eu ainda estou aqui, eu ainda não perdi a luta contra a depressão na qual você me jogou, e eu vou te dizer com todas as letras: eu vou vencer essa luta, e quando chegar esse dia, eu vou esfregar na tua cara até o último dia da minha vida que, se a tua intenção era me jogar pra trás achando que ia me tirar de alguma disputa de emprego que eventualmente aconteça, VOCÊ PERDEU, CABRA ESTÚPIDA". E foi exactamente pela presença de tal indivíduo que eu abandonei a praxe. Talvez para sempre, ou não, mas depois daquele incidente no começo do semestre, eu comecei a ter dúvidas se deveria ir a estas actividades, até chegar uma época em que eu comecei a ter nojo de tudo o que elas representam. O que é vendido como um método de integração acaba sendo apenas mais uma ferramenta usada para oprimir e humilhar em nome de uma suposta tradição que não deveria ter sido desenterrada após morrer no 25 de Abril. Sendo honesto aqui, foda-se se qualquer pessoa está a sei lá quantos anos na licenciatura, ninguém tem o direito de humilhar qualquer pessoa ou forçar ela a fazer qualquer coisa. Foda-se, a única pessoa que tens que obedecer é ao professor, ao funcionário, nunca a um colega. E aqueles que eram meus colegas na praxe acabaram virando gente que eu não conseguia ver sem suspeita, uns bem menos, e outros muito mais, e me sentia intimidado de falar com eles. Não queria criar mais conflito. E fui me afastando mais, tanto que hoje já não me sinto mais pertencendo a esta classe, com estas pessoas, me sinto tão estranho, afastado e sozinho quanto nos meus primeiros dias em Leiria. E não posso voltar pro Brasil, porque se eu ir lá eu não devo conseguir voltar, por vários motivos, desde o financeiro até o médico, e mesmo que eu tinha prometido que eu voltaria licenciado, apesar de que eu por muitas ocasiões tenha considerado mesmo acabar meio que desistindo. E às vezes tenho a impressão de que há gente com quem convivo todo dia e que quer que isso aconteça.

Hoje não sei se aquela pessoa que chegou em Portugal ainda vive em algum lugar dentro de mim, ou está morta desde Fevereiro. Sendo honesto, é melhor que tu não tenhas me conhecido pois sei que ficaria decepcionada com a mudança que aconteceu comigo. E apesar de que nunca vás ler isso aqui, talvez pelo menos eu pude desabafar tudo o que eu tenho sentido nos últimos tempos.

Espero que algum dia possamos voltar a nos falar, e de preferência quando eu estiver feliz e sem a preocupação de não me afundar na tristeza e na mágoa.